Quando se propôs um Novo Código de Processo Civil para o Brasil, várias foram as propostas apresentadas pela comissão de juristas responsável pelo anteprojeto de lei. Sem juízo algum de valor, fato é que grande parte destas propostas foi frustrada pela Lei 13.105/2015 (Novo CPC).
Propôs-se uma simplificação do sistema recursal, inclusive com a diminuição do número de recursos. O Novo CPC não só tornou mais complexo o sistema recursal como ampliou o número deles, ressuscitando o agravo de instrumento que seria extirpado (art. 1.015, CPC/2015), mas deixando um sem número de situações em que não se sabe se ele é cabível ou não (v.g. decisão sobre competência); reabrindo a possibilidade de manejo de mandado de segurança contra decisão judicial não impugnável por agravo de instrumento; potencializando o cabimento da reclamação, que passa a funcionar como verdadeiro sucedâneo recursal (art. 988 e ss., CPC/2015, mesmo após a Lei 13.256/2016); admitindo a revisão das decisões colegiadas mesmo que a parte contra ela não se insurja voluntariamente (art. 942, CPC/2015
Propôs-se a retirada do efeito suspensivo automático da apelação – reforma que valeria mais que o CPC/2015 inteiro –, tornando executável, de forma imediata, a sentença de 1º grau. O Novo CPC manteve o efeito suspensivo automático da apelação (art. 1.012, caput, CPC/2015), inclusive a permissão para que o relator do recurso possa concedê-lo nas poucas hipóteses em que a própria lei não prevê a suspensividade automática da sentença apelável (art. 1.012, § 4º, CPC/2015).
Propôs-se a simplificação do sistema processual, aproximando o cidadão da Justiça, tornando o sistema mais fácil de ser compreendido e operado. O Novo CPC tornou o direito processual civil muito mais complexo do que no regime do CPC/1973, introduzindo em nosso sistema de civil lawexpedientes típicos da common law como precedentes, overruling, distinguishing, stare decisis, ratio decidendi, obter dictum, etc.; permitindo que regras legais sobre processo e procedimento sejam alteradas pelas vontade das partes (art. 190, CPC/2015); estruturando toda uma parte principiológica, recheada de conceitos jurídicos indeterminados e cláusulas gerais.
Em um ponto, entretanto, o Novo CPC não frustrou a proposta originária da comissão de juristas encarregada de elaborar o projeto: o propósito de que os precedentes sejam levados a sério no Brasil.
Tanto no anteprojeto quanto nas versões da Câmara, do Senado e final (Lei 13.105/2015), no Novo CPC há diversas regras a apregoar a necessidade de juízes e tribunais respeitarem os precedentes superiores e os seus próprios precedentes. O art. 926 do CPC/2015, fala do dever dos Tribunais uniformizarem e manterem sua jurisprudência estável, íntegra e coerente. E o art. 927, do CPC/2015, estabelece que são vinculantes os precedentes que enumera, os quais serão observados pelos juízes e tribunais.
Este prestígio processual conquistado pelos precedentes traz a reboco consequência que, desde que devidamente compreendida e aplicada, tem efetivo potencial para diminuir o número de demandas no Poder Judiciário brasileiro, acentuando seu rendimento e celeridade.
Pois se alguns precedentes doravante são vinculantes (art. 926, CPC/2015); e se precedente, a partir de sua interpretação, revela norma jurídica; o simples litigar contra a ratio decidendi do precedente vinculante, sem ressalva alguma, é medida equivalente a litigar contra norma jurídica, conduta contrária à probidade processual e que autoriza, de uma só vez, que se obste, de plano, o curso da ação (art. 332, CPC/2015) ou do recurso (art. 932, IV, CPC/2015), e que se imponha ao demandante/recorrente, fundamentadamente (art. 489, § 1º, V, CPC/2015), as penas pela litigância de má-fé (art. 77, II e arts. 80, I, III e VII, do CPC/2015) – multa de 1% (um por cento) a 10% (dez por cento) do valor corrigido da causa, além de indenizar a parte contrária por eventuais prejuízos sofridos –, inclusive contra beneficiários da gratuidade judiciária (art. 98, § 4º, CPC/2015).
Não são, portanto, apenas os Juízes e os tribunais que deverão observar aratio dos precedentes vinculantes (art. 927, CPC/2015). No ideário de processo cooperativo e informado pelo boa-fé do novo CPC (arts. 5º e 6º do CPC/2015), as partes e seus advogados também têm idêntico dever, o que torna o ato de demandar exercício de enorme responsabilidade pessoal, profissional e social.
Obviamente, não se sustenta aqui uma “caça às bruxas”, tornando delinquencial o ato de demandar. Diversas condicionantes devem ser observadas para que se considere o litigar contra precedentes ato punível. Até para se evitar que a interpretação ora proposta se torne indesejada barreira do modelo constitucional de amplo acesso à justiça (art. 5º, XXXV, da CF).
Primeiro, demandar contra a essência do precedente vinculante é algo distinto do que demandar contra jurisprudência ou precedentes não vinculantes. Precedentes vinculantes, ao menos para o sistema legal, são apenas aqueles enumerados no arts. 927 do CPC/2015 (decisões do STF em controle concentrado; enunciados de súmulas vinculantes e persuasivas do STF e STJ; acórdãos em assunção de competência, incidente de resolução de demandas repetitivas e recursos extraordinário e especial repetitivos; e orientação do plenário ou órgão especial aos quais estiverem vinculados Juízes, Desembargadores e Ministros). Jurisprudência, ainda que dominante; precedentes, ainda que majoritários; revelam interpretação em construção, sendo até recomendável que haja postulações e recursos contrários a ela a fim de que, após debate mais acurado, possam quiçá se tornar precedentes vinculantes.
Segundo, mesmo contra a ratio de precedente vinculante é possível demandar, desde que o demandante sustente a existência de distinção (distinguishing) ou superação (overruling). A improbidade processual está no simples “acionar por acionar” o Poder Judiciário. Não para as demandas em que o proponente, trazendo fundamentos de fato ou de direito relevantes e não considerados no julgamento anterior; ou mostrando que o caso é distinto do dantes julgado; justifique e postule a necessidade de nova análise do que se requer. Longe de litigância de má-fé, isto é algo absolutamente salutar para o sistema, pois lapida os precedentes vinculantes e sua capacidade de decidir os conflitos de modo justo e igualitário.
E terceiro, as decisões, acórdãos e súmulas editadas na forma do art. 927, do CPC/2015, também importam interpretação. Sendo o precedente resultado desta interpretação, só haverá litigância ímproba quando a demanda contrariar literalmente o texto expresso do enunciado (normativo) vinculante, tal como se dá com a litigância de má-fé no casos em que deduzida pretensão contra texto expresso de lei (art. 80, I, do CPC/2015).
Até poderia se enunciar uma quarta condicionante, principalmente nos primeiros anos de vigência do Novo CPC (quando ninguém sabe ao certo o alcance da teoria dos precedentes): a litigância de má-fé só deveria ser aplicada se a parte, alertada pelo órgão julgador com base nos arts. 6º (boa-fé) e 10 (contraditório substancial) do CPC/2015, insistisse no prosseguimento da demanda/recurso sem apontamento da distinção/superação, o que estaria a revelar o intento de formular pretensão destituída de fundamento, tal como vedado pelo art. 77, II, do CPC/2015. Mas saber exatamente se há este dever judicial de advertência quanto a algo que parece ser bastante claro no sistema, demanda um pouco mais de reflexão.
Raul Seixas cantou, em verso e prosa, que sonho que se sonha junto é realidade. Afirmar, como fizeram alguns cultores do CPC/2015, que o novo diploma será capaz de reduzir, acentuadamente, o número de demandas no Poder Judiciário brasileiro, está mais para fantasia do que para sonho. Mas se há algo no Novo CPC que pode transformar esta fantasia em sonho, e este sonho em realidade, é a adoção do modelo de precedentes vinculantes em toda sua inteireza, inclusive sancionando aquele que, ainda vivendo no modelo de litigância desenfreada do CPC/1973, insista em demandar só por demandar.
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